Moradores de 269 municípios do Rio Grande do Sul dependem da central telefônica do Serviço de Atendimento Médico com Urgência (SAMU), em Porto Alegre. Ela é uma das maiores centrais do serviço em todo o Brasil. No entanto, médicos desta unidade trabalham menos do que deveriam e comprometem o atendimento a pacientes.
De acordo com apuração da RBS TV, em média, a cada 100 horas de trabalho contratadas junto a médicos, os especialistas não cumprem 60, recebendo pela totalidade da carga horária. A Secretaria Estadual da Saúde (SES) abriu sindicância na última quinta-feira (24) para investigar o caso (veja nota abaixo).
As irregularidades foram flagradas pela reportagem em três diferentes datas – em uma delas, uma paciente pedindo socorro morreu.
Sempre que algum morador dessas 269 cidades liga para o 192, ele é atendido, primeiramente, por um telefonista dessa central. Depois, o chamado é encaminhado para uma fila de espera até o atendimento por parte de um médico, que, se for o caso, aciona
uma ambulância para socorrer o paciente e eventualmente levá-lo a um hospital.
Em 10 de maio, a reportagem da RBS TV esteve pela primeira vez na central telefônica do SAMU, em Porto Alegre. Lá, apenas um trabalhador da saúde sabia da presença da equipe. Em média, 10 mil ligações pedindo socorro são atendidas diariamente pela equipe no local.
Tendo atuado junto ao SAMU por 13 anos, Cleiton Félix, que também é advogado, era enfermeiro do serviço à época. Ele descreve o que está acontecendo na central telefônica como um "escândalo".
"Depois que escurece, das 19h em diante, existe um revezamento. A 'escala da escala'. É uma escala pactuada entre os profissionais, que se ajustam para fazer um plantão mais curto", explica Félix.
Um ex-operador de rádio do serviço, que prefere não ser identificado, confirma a prática.
"Sempre foi assim. Eles faziam a 'escala da escala'. Eles reduziam a quantidade de médicos para poder descansar", comenta o ex-operador.
Segundo os ex-trabalhadores do serviço, com menos médicos nos plantões, o resultado é um grande prejuízo à população. Félix comenta que o número reduzido de profissionais em revezamento não dá conta de fazer um atendimento adequado – e que um minuto a mais pode ser “uma eternidade” para quem espera.
Médicos do SAMU fazem escala própria e trabalham menos do que o acordado — Foto: Reprodução/RBS TV
Quando a espera é longa demais
Em 12 de junho, a família de Maria Isolete, de 72 anos, entrou em contato com a central telefônica do SAMU de Porto Alegre. A idosa morava em São Leopoldo, na Região Metropolitana.
"Ela estava em cima da cama e ela ali, com dores", comenta a comerciante Fernanda Pisaroglo, filha de Maria Isolete.
Na manhã do mesmo 12 de junho, um enfermeiro que trabalha no SAMU comunicou a reportagem do que estava acontecendo em tempo real e enviou uma foto do ambiente de trabalho, praticamente vazio.
"Neste exato momento (em 12 de junho), só tem dois médicos regulando", comenta o enfermeiro.
Enquanto Maria Isolete aguardava socorro há 22 minutos, a lista de espera de moradores pedindo socorro só aumentava. Entre o início da ligação e a chegada de uma ambulância do SAMU à sua residência, se passaram 48 minutos.
A idosa tinha câncer no pulmão e morreu no hospital. Além da doença, as causas da morte apontaram infarto agudo do miocárdio e hipertensão arterial.
Rotina de escalas reduzidas
Em 27 de junho, o médico Renan Renno Schumann, que ganha R$ 11 mil mensais, chegou na Central do SAMU perto da meia-noite. Ele estava cinco horas atrasado. Ele ficou apenas quatro horas no ambiente de trabalho e deixou o local, cumprindo apenas um terço de sua jornada de trabalho.
"O que demonstra que o SAMU virou 'bico'. E ele é conhecido no meio como 'o bico'. Porque não cobra horário, né? Eu vou lá e tem uma escala ajustada reduzida, vou ganhar um 'dinheirinho' a mais com uma jornada de trabalho reduzida", comenta Félix.
Semanas antes, em 6 de junho, a situação foi ainda pior: às 6h30, havia nenhum médico atendendo na Central do SAMU. O correto, de acordo com a escala oficial, era que sete médicos estivessem trabalhando. Naquele plantão, apenas apareceu para trabalhar a médica Giordana Vargas Correia – que, mesmo assim, atendeu ninguém das 5h58 às 6h29, ainda que vários pedidos de socorro tenham chegado. Foi a gota d’água para Félix.
"A única plantonista que se encontrava de plantão sumiu. Ela desapareceu do plantão, até que ela voltou. Depois que acabou o plantão, eu fiz uma comunicação direta às chefias", relata o ex-enfermeiro.
A investigação da RBS TV aponta que, em média, de cada 100 horas de trabalho que deveriam ser cumpridas pelos médicos, 60 não eram cumpridas. Isto é, eles recebiam 60% da carga horária sem prestar qualquer atendimento.
Há indícios de que a chefia da Central do SAMU abonava as faltas irregularmente, alegando na folha de pagamentos que havia “problema na marcação pelo relógio de ponto”.
O próprio coordenador médico do SAMU no Rio Grande do Sul, Jimmy Herrera, reconhece ter conhecimento das irregularidades. Ele afirma ter essa informação "desde que entra no local".
"As coisas funcionam de maneira diferente. Quando eles sabem que eu estou lá, dentro do SAMU, os atendimentos ocorrem mais rápido e as pessoas estão regulando", admite Herrera.
Herrera afirma que a sua própria chefia "com certeza" tem conhecimento das práticas irregulares. Isso se aplicaria, inclusive, à diretoria do Departamento de Regulação da SES. Eduardo Elsade, diretor do departamento, nega ter conhecimento de qualquer prática.
"Não existe uma prática sistemática de descumprimento de horário. Ninguém tem conhecimento de nenhum tipo de situação irregular administrativa", comentou o diretor.
Ele também nega ter se omitido e afirmou à reportagem da RBS TV que uma investigação já havia sido aberta para apurar as supostas irregularidades. Contudo, conforme apurado pela reportagem, a sindicância só foi aberta após a realização de entrevista por parte de Elsade.
Para José Luiz Blaszak, professor de Direito Administrativo e especialista em gestão pública, a prática deveria ser investigada por autoridades policiais, já há indícios de uma série de crimes, como falsidade ideológica e omissão de socorro.
"Estamos diante de uma caracterização de crime, improbidade administrativa, ferindo a ética médica. Não é uma eventualidade, não é um equívoco que aconteceu uma ou outra vez. Existe uma organização sistemática para lesar a administração pública", explica o especialista.
O que diz a secretaria estadual da Saúde
Em nota assinada pela própria titular da pasta, Arita Bergmann, a SES se manifestou:
A SES não compactua com qualquer irregularidade na administração pública. Este Gabinete da SES teve ciência sobre estes fatos na quarta-feira ao meio-dia e, de imediato, determinou a abertura de processo administrativo, que culminou com a assinatura da Portaria n. 802/2023-DGESP instaurando sindicância para apurar eventuais irregularidades já na quinta-feira, dia 24 de agosto, publicada nesta sexta-feira no Diário Oficial do Estado.
Na presença de Diretores da SES e de representante da Procuradoria-Geral do Estado, a Secretária da Saúde instalou a Comissão nesta sexta-feira, solicitando à Comissão a agilidade necessária ao deslinde do caso e a punição dos responsáveis em caso de comprovada irregularidade.
A Comissão já teve os trabalhos iniciados nesta sexta-feira, inclusive com outiva de servidores e análise de documentos, e tem prazo de 30 dias para a conclusão dos trabalhos.
Ressalte-se que a SES, sempre que constata fato de irregularidade, seja por identificação própria ou por denúncia, adota as medidas cabíveis.
Reitera, ainda, que cumprimento da carga horária é dever do servidor público (Lei 10.098/94 - Estatuto do Servidor) e que o não cumprimento de carga horária é infração administrativa e sempre que identificado servidor, deve ser apurada e, se comprovada, punida.
Se comprovados os fatos, podem estes ser considerados crime e, como em todos os casos, terá encaminhamento ao Ministério Público.
A SES sempre se pauta pelo cumprimento de normas e toda e qualquer possível irregularidade será corrigida e, nos termos da lei, quando comprovada, punida.
Também conta com sistema de controle interno e, havendo necessidade, além de sindicâncias, podem ser realizadas ações internas e auditorias para qualificar e corrigir situações encontradas.
Assim, o encaminhamento foi e sempre será de corrigir erros, punir os responsáveis, quando identificados, com a total transparência que a SES sempre teve e se pauta.