"Família é dar amor e carinho, é jantar na mesa junto e dar beijo de boa noite", descreveu Matheus, na época com nove anos, quando uma psicóloga e uma assistente social perguntaram a ele o que significava família, antes de sua adoção. A partir daquele momento, o menino percebeu que sua vida e a de seus dois irmãos mais novos poderiam mudar, fora do abrigo.
As responsáveis mostraram a ele fotos de dois homens, Daniano e Alexandre, um casal disposto a sair de Canoas, no Rio Grande do Sul, e ir até o interior de São Paulo para buscar as três crianças e formar uma grande família.
No entanto, Matheus tinha apenas um questionamento: "eles vão me amar de verdade?". Mal sabia ele que seus futuros pais estavam mais do que prontos para acolher os três novos amores em suas vidas.
"Nós vamos ter dois pais", gritou Matheus pelos corredores do abrigo para contar a novidade aos irmãos.
Em 2019, Matheus, Miguel, na época com cinco anos, e Murilo, com dois, ganharam uma casa nova no município da Região Metropolitana de Porto Alegre.
Murilo, Matheus e Miguel, respectivamente — Foto: Reprodução/RBS TV
Processo de adoção
Daniano Engers, gerente de operações, e Alexandre Oliveira, gerente de logística, iniciaram o processo de adoção em 2018. Após um ano de preparações e avaliações, foram habilitados e logo surpreendidos por uma proposta inesperada: a adoção de três irmãos.
Inicialmente, o casal planejava adotar dois filhos. No entanto, após uma conversa com a assistente social, foram aconselhados a ampliar seu perfil, ajustando seus requisitos para incluir mais crianças, expandir as opções para diferentes estados brasileiros e considerar crianças com condições especiais.
"A nossa ficha comportava tudo. Os nossos filhos poderiam vir nos formatos que viessem. A gente descobriu que eram três meninos e que eles tinham sofrido violência extrema. O pai tinha sido vencido pelas drogas e a mãe queria começar a vida de novo. Eles foram entregues para a avó paterna, que entregou eles pra adoção", conta Daniano.
De acordo com o Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, mais de 4,7 mil crianças e adolescentes podem ser adotadas no Brasil. Ao mesmo tempo, o país conta com mais de 35,9 mil.
Daniano e Alexandre se conheceram em 2003 e, em 2007, decidiram morar juntos. Desde o início, Daniano tinha um desejo claro: adotar. No entanto, Alexandre tinha receios sobre como seria a vida com filhos adotivos, especialmente em um cenário onde a aceitação social ainda era uma preocupação.
"Ele [Alexandre] se preocupava muito com o que as pessoas iam pensar", explica Daniano.
Contudo, o desejo de construir uma família superou as dúvidas iniciais. Em 2016, o casal formalizou sua união ao se casar, algo permitido pela legislação brasileira desde 2011.
A chegada das crianças foi um desafio para os pais. O "pai Dani" e o "pai Xande", como começaram a ser chamados, tiveram que adaptar suas rotinas a nova realidade.
"Tu começa a olhar a vida de uma outra forma. É uma reconstrução. Para nós, é o choque de tu perder a liberdade, de tu ter a responsabilidade. É uma rotina cansativa, exaustiva, porque antes éramos só nós dois, agora somos cinco. Primeiro a gente prioriza eles. Então, assim, muda tudo, mas, principalmente, o teu interno como ser humano, tu ressignifica", relata o gerente de operações.
Além disso, todas as datas comemorativas ganharam um novo significado para a família.
"No Dia das Mães a gente comemora o Dia da Família e o Dia dos Pais então teve outro significado. O Natal, tu monta a árvore com eles. O Ano Novo se torna mais colorido e alegre. A casa da gente vibra, parece que as paredes têm voz, têm sorriso", conta o pai.
O casal também precisou entender a vida das crianças antes da adoção.
"A gente também foi muito pulso firme com eles, no sentido de que eles têm responsabilidades, têm tarefas, têm horário, porque eles eram crianças que pediam isso, eles precisavam de limite", explica Daniano.
A pandemia e o isolamento social chegou poucos meses depois da adoção dos três irmãos e trouxe outros desafios para a família. Além das crianças estarem se adaptando a uma nova vida, elas também precisaram se adaptar ao ensino remoto. Assim, uma nova dinâmica familiar precisou ser montada em um espaço reduzido, dentro de casa.
"O Alexandre trabalha em um hospital, então ele nunca deixou de ter que ir presencial. Eu tive que trabalhar em casa e também tinha que apoiar as três crianças porque um estava no 6º ano, um no 1º ano de alfabetização e o Murilo ainda na educação infantil", relembra.
Para a família, o Carnaval é a cara deles, é a representação de uma expressão de inclusão, identidade e comunidade. Segundo eles, o Carnaval não é apenas uma festividade anual, mas um espaço para celebrar a diversidade.
Para Daniano, "é uma válvula de escape pessoal".
"É o lugar onde tu inclui as pessoas, independente do biotipo físico delas, independente da situação financeira. Essa é a vinculação de família pra mim também. E a escola de samba inclui qualquer pessoa. Tu quer estar ali, é o momento de tu ser feliz e tu poder ser quem tu é. Acho que é por isso que eu gosto tanto", conta.
É com esse pensamento que lidam com as adversidades do dia a dia, como os julgamentos homofóbicos.
"Teve um dia com o Matheus na escola, isso foi logo que ele veio, que um menino disse assim pra ele 'e tu que é filho de dois veados?'. O Matheus respondeu: 'olha, eu prefiro ser filho de dois veados que me amam e me cuidam do que ser filho daqueles pais que não me cuidavam'", relata.
Apesar desse caso, Daniano diz que não sente que a família passe por muito preconceito. Na maioria das vezes, os olhares na rua que são mais perceptíveis.
"Tu vê que tem olhos de curiosos, e olhares de acolhimento também, de pessoas que entendem o contexto", descreve o pai.