Em 2018, agoniada com seus problemas e a discriminação que sofria, Raven Saunders pegou o volante com força e girou em direção a uma ladeira em uma estrada no Mississippi, nos Estados Unidos. Na ocasião, imaginou o carro caindo no precipício, pondo fim aos seus problemas. Mas parou para fazer uma última tentativa: escreveu uma mensagem para sua terapeuta, que a acalmou. Saunders, naquele momento, sentiu que alguém ainda a ouvia.
“O fato de minha terapeuta ter respondido àquela mensagem enquanto eu estava no carro foi um ponto de virada que mudou minha vida”, conta Raven Saunders, sobre o momento mais dramático de sua vida.
Quando fala, expõe seus sentimentos complexos: “Era jovem, negra e gay. Há muitos estigmas em torno disso e cheguei a pensar que não encontraria uma saída. O atletismo me distraía, mas os problemas persistiam. Estava dirigindo e isso passou pela minha cabeça”, disse a atleta em 2018, então com 22 anos, depois de conseguir o quinto lugar no arremesso de peso nos Jogos Olímpicos do Rio 2016. Agora, se percebe como uma pessoa de gênero não binário e compete entre as mulheres por não ter outra alternativa.
Sua presença é sempre marcante, principalmente por esconder o rosto nas competições com uma máscara. Isso começou obrigatoriamente nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020, quando ganhou a medalha de prata durante a pandemia, mas adotou como uma modalidade que tem a ver com o que tenta mostrar de sua identidade. Inicialmente, usou a máscara do Hulk, o personagem que possui duas personalidades: “Queria chamar a atenção”.
Naquele torneio no Japão, no pódio, Raven cruzou os braços no ar para formar um X. Na ocasião, perguntaram o que significava e ela explicou: “É a interseção onde todas as pessoas oprimidas se encontram”.
O COI, que costuma rejeitar qualquer tipo de reivindicação social, analisou uma sanção por isso, mas finalmente deixou passar a reação. “O importante é gritar para toda a minha gente negra, a comunidade LGBTI, a minha gente que lida com a saúde mental. Isso é maior do que nós e do que os poderes fáticos”, disse Saunders.
Um dos conflitos, ao se considerar não binário, foi encontrar um caminho para sua profissão como atleta em competições que só consideram duas possibilidades para participar: homem ou mulher.
“Encontrar a separação entre minha pessoa e o esporte foi o que me devolveu o equilíbrio. Ter esse nível foi o que me deu tanta paz quando voltei ao esporte. Me trouxe muito mais felicidade e realmente me ajudou a me apaixonar por ele”, explicou.
Paris 2024
Em Paris, escolheu usar uma máscara preta com óculos espelhados que ocultava completamente seu rosto nos arremessos. Mas disse que não fez isso por alguma razão vinculada à sua escolha de gênero. “Queria atrair olhares, colocar o foco na nossa disciplina. Somos arremessadores de peso, mas temos nosso próprio estilo. Podemos fazer coisas tão grandiosas quanto os velocistas e merecemos atenção”, argumentou.
Com 18,62 metros na eliminatória, Saunders conseguiu a sétima marca e se classificou para a final de arremesso de peso feminino, que será realizada nesta sexta-feira, no Stade de France. Não havendo uma alternativa diferente ao sexo feminino ou masculino, é ali que Raven Saunders buscará sua segunda medalha olímpica.
Nas suas redes sociais, solicitou que ao mencioná-la se usassem pronomes não binários: "they", em inglês; ou o equivalente a “elu” em nosso idioma (a RAE incluiu brevemente no Observatório de Palavras, mas retirou em 2020).
Saunders voltou a competir este ano após 18 meses de suspensão. Em 2022, os médicos tentaram fazer controles antidoping em três oportunidades (8 de janeiro, 26 de maio e 15 de agosto) nos endereços que havia fornecido, conforme estipulado pelo regulamento. Mas ela não estava nesses locais, o que motivou uma suspensão por não cumprir com a normativa antidoping.
